Bem, após as rápidas pinceladas sobre os
saudáveis hábitos alimentares dos congoleses, existem muitas outras
particularidades que naturalmente despertam a curiosidade de qualquer pessoa,
sobretudo de crianças, como meus filhos, que tudo queriam saber, e sobre tudo
perguntavam, e haja paciência para tentar explicar o porque das coisas,
principalmente porque, andando pelas ruas, apontavam para as pessoas, e
perguntavam “discretamente”, como faz qualquer criança
curiosa:
“Olha pai, aqueles dois africanos de mãos
dadas... dois homens grandes assim... de mãos dadas na rua ?”. E toca
explicar que entre os africanos é comum os homens se abraçarem, se beijarem
(também na boca, pai? Sim, também na
boca, para eles é normal), e, principalmente, andarem de mãos
dadas.
“Olha pai, o cabelo daquele mulher lá... Que
gozado... como elas fazem isso
?”
E toca explicar que aquele penteado esquisito,
uma espécie de imitação da Torre de Pisa na cabeça da africana, era feito
usando-se uma armação de arame, entrelaçando-se os cabelos devidamente enrolados
em estilo “rastafari”... Tentem
imaginar...
“Olha pai, aquela mulher tá fazendo xixi na
rua”... O processo é simples, as congolesas (do povo, lógico) não usavam
peças íntimas, e se vestiam, com os panos enrolados em torno do corpo, e
então, se sentiam alguma necessidade fisiológica, simplesmente paravam no meio
da rua, separavam as pernas, e pronto.
Sem problemas. Lá não havia
necessidade de banheiro público.
Essas eram algumas das curiosidades que pudemos
observar, sobre usos e costumes locais.
Existiam outras peculiaridades que serão comentadas posteriormente, à
medida das oportunidades.
Vamos falar um pouco da cidade de Kinshasa, “Kin
la belle” , como a chamavam os locais.
Pode-se mesmo dizer que realmente, dentro dos padrões africanos, era uma
bela cidade, pelo menos no lado, digamos, europeu da cidade, onde viviam os
europeus e alguns dos congoleses endinheirados, tais como políticos (sempre
eles), comerciantes, autoridades. Esse
lado poderia ser comparável a qualquer cidade brasileira (claro que cidade de
porte médio), com altos edifícios, boas avenidas, tudo asfaltado, um razoável
serviço de esgotos, clubes, teatros, escolas, hospitais, enfim, uma cidade
normal. Agora o lado popular, era
deprimente, sujeira por todos os lados, esgotos a céu aberto, dificuldades para
tudo, principalmente de transporte, que era verdadeiramente calamitoso,
haviam poucos ônibus, caindo aos pedaços, superlotados (chega a ser familiar
? Pois é...). Esse terrível contraste, sempre deixava as
coisas em pé de guerra, sempre havia o perigo de alguma reação violenta,
principalmente quando os europeus cruzavam essa imensa favela em seus carros
modernos, pois em caso de pane, seria preciso apelar para os santos protetores
(todos eles).
Os europeus, por seu lado, além de não se
misturarem aos congoleses, também separavam-se entre si. Os portugueses, belgas, italianos, franceses,
americanos (lá eram considerados europeus), indianos, gregos, paquistaneses, e
mais quantos surgissem, viviam em círculos fechados. Cada colônia tinha sua escola, sua igreja,
seus locais preferidos para diversão, havia pouca
mistura.
Nunca consegui entender essa coisa, pois
se
todos eram pessoas que estavam longe de suas casas, não seria melhor uma
convivência pacífica e normal? uma interligação? Principalmente se considerarmos que vivíamos
sobre um barril de pólvora, que não precisava de muita coisa para
explodir.
A situação era tão discriminatória, que eram até
determinantes em problemas de coração.
Se, por exemplo, uma garota portuguesa quisesse namorar um rapaz belga,
era um Deus nos acuda, a família, os amigos, reagiam de maneira até
violenta. Houve inúmeros casos de
violentas brigas em boates, iniciadas com uma inocente paquera entre
inconsequentes Romeus e Julietas... Tal desunião sempre custou caro a
todos.
Devido
diversos fatores, matriculei meus filhos na Escola Portuguesa de Kinshasa. Além de manter um nível de ensino muito bom,
tinha a facilidade da língua, que é quase a mesma, e, vivíamos entre os irmãos
portugueses.
Cabe aqui abrir um parágrafo, para falar sobre a
gentileza com que fomos recebidos pelos portugueses, chega a ser inacreditável o
carinho com que nossos irmãos europeus recebem os brasileiros, principalmente
naquelas circunstâncias em que ambos éramos “invasores”, vivendo em território
alheio.
Quando perguntava a eles porque não tratavam os
outros europeus da mesma maneira, a
resposta era uma só: Ora pois, eles não são brasileiros, pá!. Realmente, o que nos deu forças para superar
os traumas iniciais, foi a forma com que fomos recebidos pelos amigos
portugueses. Quero deixar aqui meu
agradecimento, extensivo a todos os
portugueses.
Ainda há muita e muita coisa a ser dita, como
veremos adiante...
Marcial Salaverry
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